Consciência Pesada

Eles têm uma copeira latina que usa uniforme. A mesa de centro é de vidro, então cada vez que eu apoio o copo faz um certo barulho, o que denuncia meu estado alcoólico. Damn it, preciso ir devagar. É a minha primeira vez em Los Angeles, mas pelo que entendi a “parte alta” – alta mesmo, na montanha – é onde moram as estrelas. Keanu Reeves é o vizinho. O anfitrião deve viver dos direitos autorais da conhecida série de TV que escreveu no fim dos anos 70. Depois que seu parceiro e melhor amigo faleceu, vinte anos atrás, não lançou nenhuma obra inédita. 

Sete da noite. Vinho branco. Não posso tomar muito porque embebedo em dois segundos e preciso conseguir conversar em inglês. Entender as perguntas que ele vai me fazer sobre como encontrei o texto e por que eu e meus parceiros queremos montá-lo no Brasil. Eu sou apenas uma pirralha beirando os 30 que se meteu a comprar os direitos de uma peça, tento deixar isso claro. É muita informação, então vou bebendo bem devagar enquanto vou comendo os quitutes colocados sobre a tal da mesa de centro da ampla sala bem decorada. Não sei muito bem como fui parar ali, mas entendo que ela, a esposa, já foi para São Paulo, não sei bem em que ocasião, pois ela falou rápido demais e eu estou tentando responder `as outras perguntas, feitas pela sobrinha dela, que é agente dele. Somos quatro personagens. Cinco, contando com o cachorro que amou minha meia-calça. Seis, com a moça latina que entra em cena de vez em quando para servir mais alguma coisa, até se despedir `as oito horas. 

A esposa olha para ele com uma ternura profunda que eu gostaria de alcançar um dia. Ele se apoia numa bengala. Ela tem a voz rouca. Ele escuta com dificuldade.

Ela é atriz. Era óbvio, desde a hora em que entrei no carro. Ela foi me buscar no hotel para que eu conhecesse seu marido. Vê-la dirigir e falar já é incrível. Tem gente que nasceu pra ser visto. Ela tem um brilho generoso, que faz o outro lembrar que tem o mesmo brilho, em algum lugar da Alma.

– Gostaria de ver você no palco – eu disse.

– Aqui ninguém escreve para mulheres da minha idade. E quando escrevem, a Jane Fonda é quem faz. Então… 

Estamos rindo enquanto ele conta sobre o dia em que não aceitou a proposta de um jovem diretor que queria dirigir um de seus roteiros. Ele se chamava Steve Spielberg. Depois mudou para Steven. Ele diz que se arrepende amargamente e que nunca se deve negligenciar alguém por ser jovem e inexperiente. Consciência pesada. Ela assiste contemplativa ao nosso diálogo entusiasmado. Me parece que os olhos dele hoje brilham um pouquinho mais que o normal. Ela confirma que minha impressão está correta tocando de leve seus joelhos com a ponta dos dedos. Os mesmos olhos turvam ao falar do melhor amigo. Uma pausa. Eles são americanos e resolvem mudar de assunto rápido. 

– Esse papel é de uma grande responsabilidade – ele diz, se referindo ao papel do protagonista da peça.

– Vou avisar o ator – respondo, ainda sentindo o vácuo do assunto anterior, o melhor amigo.

Explico que gostei do texto porque me lembra Hitchcock e sou fã de tramas de suspense. Soa como se eu tivesse feito uma pesquisa enorme. Mas a verdade é que tive sorte e confiei nas críticas que li sobre a peça na internet. Random. O nome me atraiu: Consciência Pesada. Puro entretenimento, sem grandes pretensões. 

– Hitchcock estava enorme de gordo quando fomos almoçar. Mal conseguia sentar na cadeira. 

– Uau – não sei o que comentar

– Alguém sugeriu que gravássemos a conversa. Não achei ético. Ele nos deu uma consultoria uma vez, sobre um roteiro que tínhamos escrito. Todas as anotações eram de Alma, sua esposa. Alma era o grande cérebro. Ele nunca deu a ela nenhum crédito.

– Sempre uma grande mulher por trás de um homem, ah? 

Eu não deveria ter dito isso, porque isso talvez seja um segredo em certas relações e ela me olha agora como se eu tivesse revelado uma parte da trama que deveria ter ficado oculta. Talvez eu pudesse ter feito um trocadilho: “sempre uma grande alma por trás de um homem”, ou algo assim, soaria mais engraçado pelo menos. Sou brasileira, então mudo de assunto muito rápido.

– Conhece filmes brasileiros?

Ele adora Central do Brasil. Digo que fiz uma pontinha num filme do Walter Salles e que ele é um lord. Ele volta a falar de Hitchcock:

– Ele me deu uma dica que nunca esqueci: um roteiro só suporta uma coincidência. Mais que uma, e o público não confia mais na sua história.

A coincidência dessa história foi eu ter topado com esse texto e vindo parar aqui – penso. 

Ele me mostra seu escritório, seus prêmios e livros. Parece orgulhoso. Ela vem atrás. A sobrinha olha no relógio. Diz que vai me levar de volta para o hotel. 

Agradeço imensamente, e digo que amanhã entrego o dinheiro dos direitos. Eu trouxe o dinheiro num envelope. Ela ri e finalmente entende que sou uma pirralha metidinha, não exatamente Steve.

No carro, a sobrinha é quem me agradece, como se eu tivesse feito um grande favor. Disse que eu tive muita sorte em encontrá-la, afinal ele não é representado por nenhuma grande agência de autores há duas décadas, desde de que parou de escrever. Será que são duas coincidências na mesma história? Não. Acho que são duas histórias. Uma é essa. A outra estará em algum palco, em breve. 

(Se você, AMADO EMPRESÁRIO ou ALMA LINDA do marketing de uma empresa INCRÍVEL DE LEGAL, que patrocina teatro pela Lei Rouanet ou Proac, VAI AMAR ESSA PEÇA, tenho certeza. Entre em contato aqui, vamos teclar, que eu te conto tudo. Beijos, te amo muito).


A única coisa que não pode

Eu disse pra ela que não tinha nada de místico. Eu tinha que dizer, ou ela não iria comigo.

– Só tem uma regra: não pode revelar o mantra – expliquei, mesmo sem ter noção do porquê – O pessoal lá fala em resultados, resultados, resultados e gráficos cartesianos. Ou “seje”, o bagulho é bastante objetivo. Eles usam gravata, são calminhos e sorriem bastante. Eles falam o tempo todo em efeitos regenerativos e usam palavras difíceis que a gente `as vezes não entende, mas que os médicos e as pessoas da ciência gostam e por consequência a gente se sente seguro quando ouve, e certamente depois de uma semana de aula nós vamos regenerar várias coisas, inclusive nosso próprio vocabulário e ficaremos não só mais tolerantes e compassivos quanto inteligentes. Me encontra lá `as oito? Beijos.

Talvez por conta desta argumentação, feita via gtalk, a Mariana tenha topado ir. Ela é gêmeos com gêmeos, ou “seje”, jamais entraria num lugar onde alguém diz que vai mudar sua vida usando bata, ou com algo colado entre as sobrancelhas, e dizendo o que você pode ou não pode fazer para atingir um estágio mais evoluído de existência. Ah, só tem uma regra: não pode revelar o mantra.

A Elisa topou mais fácil porque ela é peixes com sagitário, então foi só proferir as palavras “meditação transcendental” para que, sem grandes questionamentos, ela fosse nos encontrar meia-hora antes do combinado para bater papo com o pessoal de gravata e sacar o feng shui do lugar.

A única coisa que não pode é revelar o mantra. Eu já disse isso, eu sei. É que eles repetem algumas vezes. Como um mantra. O mantra é uma palavra em sânscrito que você fica repetindo mentalmente. É uma palavra que não significa nada, tipo “geléia”, só que eu sânscrito. Cada um recebe um. E eles reiteram para você entender: não significa nada. Por isso não questione. Não quer dizer nada. Mesmo. E aquilo te faz não ter mais insônia. Nem medo, nem depressão. E ser feliz pra caramba. E pensar num coelho branco e resolver um roteiro empacado e ganhar o Oscar. Coisas assim. Aí você leva uma fruta e umas flores no primeiro dia, só pra constar e pronto. Só não pode revelar o mantra.

No segundo dia recebemos o mantra, que é uma palavra que não significa nada. Nada mesmo. Só não pode contar pra ninguém. Adoro segredos. Nunca guardei um. Talvez isso devesse ser um segredo, mas a verdade é que acho muito difícil manter uma informação guardada só para mim, então dou sempre um jeito de dividi-la. Mas desta vez eu estava disposta a obedecer.

As pessoas céticas sabem guardar segredos muito melhor do que as que crêem em coisas. Os céticos limam o mistério da vida porque têm urgência em obedecer a alguma verdade ou regra. Talvez os céticos não suportem a própria grandeza e infinitude e precisem se agarrar a alguma ilusão de fim.

Os primeiros dias foram incríveis porque eu não questionei nada e realmente minha ansiedade baixou a zero e eu estive em Júpiter e vi coelhos lindos, até que fui jantar com a Elisa, que é uma pessoa que crê em coisas. Ela colocou o mantra no google. Sim, MEU DEUS, ela colocou o mantra no google. A Mariana não, mas a Elisa sim, e ela descobriu que o mantra é (PAUSA DRAMÁTICA)… a invocação de uma entidade divina hindu que vem para curar nossas mazelas. (PAUSA). A entidade é tão maravilhosa que ela pensou em tatuar ou fazer um poster pra botar no quarto. Se cada um tem um mantra, cada um tem uma entidade que precisa invocar e eles descobrem isso pela cor da fruta que você leva no primeiro dia. Claro, esse pessoal de gravata acha que engana a gente com esse falso ceticismo? Eles pedem frutas e flores para lerem a nossa alma! Óbvio, o universo é muito maior e as dimensões espirituais estão presentes em tudo, não me venham com gráficos cartesianos. Claro, entendi. Eles estão querendo fazer o bem a qualquer custo, por isso se disfarçam de céticos para atingir os próprios céticos, genial, e quando chegam em casa a noite eles colam coisas entre as sobrancelhas e comem comida orgânica e rezam. Eles na verdade são hippies disfarçados de cientistas.

Cheguei em casa e dei um google no mantra. A única coisa que não pode é mexer com o mantra. Ah, mas não pra mim, vai, porque eu já entendi todo o esquema.

No dia seguinte fui meditar e fiquei pensando no google. Depois na culpa de ter botado o mantra no google. E depois no que iria dizer para o orientador sobre ter desobedecido a única coisa que não podia, e na possível reação negativa dele. Não vi mais coelhos nem oceanos, nem estrelas, nem nada. E não transcendi. Nem no outro dia, e nem no outro. Fui corrompida pelo meu excesso de crença. Ou pela minha falta de fé. O que dá na mesma.

Aí fui confessar para o homem de gravata que eu violei a única coisa que não podia. Ele riu e disse para eu continuar meditando.

 

 

PS – anota aí meu mantra: é…. (nããão pode contar!)


Quando parei de pisar em conchas

1,67 mil anos-luz de altura de pura inconsistência. Pés e cabeça nunca haviam estado tão longe um do outro. Uma cabeça oca flutuava no espaço, além da estratosfera. Mas sem se lembrar dos pés, que lá embaixo, num planetinha simpático (visto de longe), pisavam conchas molhadas, mas sem sentir nada. Porque estavam de tênis. O cadarço desamarra. É dos meus pés que estou falando. Abaixo e percebo que as conchas têm mais ranhuras do que eu imaginava lá de cima. Que dúvida. A mesma que alguns astronautas devem ter. Muitos se confundem com o espaço. Sem sentir gosto, ouvir vozes ou sentir cheiros, imersos numa noite que não acaba, decidem nunca mais voltar. Como a cachorrinha, que no fim das contas, encontrou um planeta melhor para viver. Será que é porque lá os cães não são tratados como cachorros, ou porque ela não foi obrigada a se lembrar dos próprios pés já que não usa tênis que desamarram? Eu resolvi ficar neste planeta mesmo. Foi uma opção, consciente ou não. Gostaria de ter encontrado alguém para conversar, mas não havia ninguém ao meu redor, só conchas.

Tentei acreditar que era a sola do sapato que quebrava as pobres conchas, não eu. Porque era hmmmm delicioso demais para confessar. E triste. Talvez se não fosse triste eu confessasse. Coisas deliciosas e tristes são as mais inconfessáveis. E fazia crec-crec, enquanto a outra extremidade procurava um planeta que não existe. Neste planeta, as conchas não seriam tratadas como conchas. E, se naquele momento, eu tivesse consciência de que faço parte disso tudo, talvez eu não estivesse pisando nelas. Eu estava quebrando as minhas companhias por causa de uma lacuna bege e apática que me cercava em rodamoinho e me hipnotizava para trocar meu coração por uma chave de fenda. Eram abelhas transparentes que zuniam alto e me faziam surda e sonolenta. Havia brechas, intervalos de minutos contados ao contrário, que era como um fogo frio meio azulado.

Na época eu estava lendo um livro que contava a história de um cara meio maluco que dizia ter tido contato com um planetinha–micro chamado Tralfamador. Era quase tão insignificante para o universo quanto a Terra, não fosse pelo fato de ser povoado por seres bastante evoluídos. Criaturas interessantíssimas e bastate sábias. Eram extremamente desapegados e entendiam que o tempo não é linear como um colar de contas. Para eles, tudo aconteceria ao mesmo tempo, logo, não haveria motivo para se abalar com coisas ruins. Esses serezinhos não se irritavam nem se entristeciam com nada, porque sabiam que qualquer coisa é apenas uma fatia da realidade infinita. Percebi que não precisava me aborrecer com a falta de tônus, pois em algum lugar nesse mesmo tempo, eu haveria de estar completa.

Aos poucos as brechas foram aumentando. Como se eu pudesse negociar. Eu estava ganhando credibilidade. Estou de tênis, e isso não me parece justo. Elas estão nuas. E quebram sob meus pés, chiando crec-crec – o que pode ser uma justa reivindicação vinda do cálcio duro, que, caso obtivesse os mesmos direitos que eu, no mínimo perfuraria a superfície da minha sola. As conchas são tão perfeitas que devem ter um pensamento muitíssimo organizado. Quem mais na natureza consegue se manter em ordem e harmonia assim? Um invólucro feminino, acolhedor, tão delicado quanto resistente? Os ovos? Talvez. Até nascer alguém de dentro deles, ou serem pisados por pés calçados. Porque tudo é cíclico. E “assim por diante”. É genial como o Kurt Vonnegut coloca essa frase tão banal no meio dos parágrafos e funciona tão bem.

Tenho medo do julgamento das conchas. Elas parecem levar tudo a sério demais, e no fundo, ter muito mais consistência na vida do que eu. Por isso estou tentando destruí-las. Não suporto este crepúsculo límpido que me esfrega na cara um universo infinito de possibilidades que ignoro. Abdico porque estou imersa demais em bobagens, olhando demais para o chão para perceber os pontinhos prateados que salpicam devagar, um de cada vez, no céu. Cada um é uma possibilidade negada que acontece ao mesmo tempo em minhas vidas paralelas, diriam os serezinhos daquele outro planeta. Eles se diluem num oxigênio azul-escuro que quase anoitece, mas não esquece, antes, de me lembrar, com um mini estardalhaço alaranjado, de todas as outras vidas que eu poderia ter tido, mas abdiquei por preguiça de imaginar. Em vez disso continuei a pisar em conchas. E elas continuam surgindo, uma a uma, em fade in, se fazendo de reais e paupáveis até serem desmascaradas pelo sol que volta no outro dia.

Desejos gasosos sopram de um lado a outro. Vão embora. Depois voltam. Assombram e cobram o que deveria ter sido feito e não foi. Estrelas não são nada sem conchas. Sonhos não são nada sem estrutura. Urano não é nada sem Saturno. Quebro as conchas embaixo para não olhar as estrelas, que do alto, me acenam com os sonhos que não ouso. Enquanto caminho em busca de conchas mais graúdas, o mar que vem e vai reflete uma lua redonda que vai me seguindo pelo chão. A lua me vigia como um espelho gigante. Me ajuda a lembrar de tirar os sapatos para sentir realmente o quanto o cálcio é duro.

Chega. Num susto (surto), parei de pisar em conchas.

(O livro que citei é Matadouro 5, do Kurt Vonnegut)


Malu pela janela

Há séculos que eu não tinha vizinhos. Assim, de porta. Porque agora eu moro numa casa de novo e tem vizinhos de todos os lados – dos lados e nas costas. E tem uma criança que está querendo muitas coisas toda hora. Muitas, muitas, muitas mesmo. Eu percebo que a mãe tá desesperada para resolver porque assim a paz volta pra todo mundo, inclusive pra mim que to tentando escrever umas coisas. Consigo entender mais ou menos umas frases tipo “o tio vai…” “vai lá…” “lindoooo” e umas palavras meio nada a ver que vão se juntando aos poucos que nem uma música que vai revelando cada instrumento. Só que é uma melodia meio sem pausa, que vai batendo rápido  – não sei se é o meu bairro que é quieto demais ou se é São Paulo que esvaziou de repente, mas agora existe som de gente, bem louco isso né meu (Meu, não posso acreditar que escrevi isso, e li agora, depois de duas semanas, fez mais sentido do que nunca). E o que que entra pela janela de madeira, é o que dá pra entender, né. Eles são os vizinhos dos fundos – que plantaram a tal da trepadeira que que vem por cima da cerca e cai no meu quintal e deixa coisa toda mais verde, né a cor verde é demais que dá pra ver da janela de madeira que falei agora. A mesma que me apaixonei em abril, porque ela abre de cima a baixo, e por causa dela resolvi que tudo ia ser novo mesmo, a do meu quarto. Mas tudo tem um preço. Inclusive pra tadinha da Manu, putz, é MALU, que teve o nome pronunciado pelo pai agora tão forte que deu total pra entender, até pra corrigir depois. Ela quer simplesmente comer a sobremesa antes do almoço, só isso, só isso, porque é sábado e sábado poderia poder tudo, não é mamãe, né mamãe, fala, fala mamãe, e a mamãe está irritada não só com a insistência da coitadinha da Malu, mas pelo tom de voz do pai da criança, com quem eu resolvi me casar e deixar de priorizar, pelo menos “temporariamente” o que tava em jogo na minha vida naquela hora, e todos os esforços que eu tinha que ter feito para que as coisas acontecessem, mas eu não achei que era tão assim e com a fecundação do óvulo, meio que sem querer querendo ficou tudo mais difícil ainda e agora o cara está chateado em descobrir que tem que tomar umas providências chatas pra caramba do tipo chamar o carroceiro depois de ir no Ceasa cedo porque ela não é minha mãe e eu sou tipo um homem feito agora, de quase quarenta anos. Só que é foda, porque eu ainda acho que eu podia ter feito uma escolha melhor. E ela também.

(Isso é apenas um exercício de liguagem inspirado nas aulas que estou tendo com o dramaturgo Leo Moreira. É uma tentativa de reproduzir a maneira como eu falaria de fato esse texto – e no fim uma experiência de mudança de pessoa)

Dia Fora do Tempo

Fiz este desenho num mês de julho, há alguns anos, e resolvi inventar uma história sobre ele.

Ela não estava convicta de que tudo correria bem, mas resolveu tentar, afinal, em sua cabeça, seus 23 anos durariam pelo menos cinco. Essa ingnorância a respeito da efemeridade de suas maçãs do rosto refletia num comportamento quase quinze vezes mais seguro que o dele – ou, segundo ele, mais impulsivo. A urgência do rapaz em saber se ela tinha certeza de que queria voltar a ficar junto era nítida pelos quase quinze anos de diferença e algumas marcas na pele – charmosas, segundo ela, mas que para ele, o obrigavam a fazer escolhas.

Ela tentou. Marcou um encontro romântico, na praça do pôr-do-sol. Decidiu ir a pé. Sabia que pensava melhor enquanto caminhava. Tinha que cuidar apenas das músicas que seu ipod shuffle colocava para ela ouvir durante o trajeto. Tinha percebido que Ramones não a ajudava a pensar claramente nas coisas. Preferia David Bowie.

Ele chegou antes, com uma caixa de cerejas e outra de damascos secos. Ela achava aquilo tudo meio ridículo, não entendia como alguém podia se alimentar como um esquilo, germinar linhaça e coisas assim. Era 2007, por favor. Claro que ela não disse nada, e na verdade, adorou as cerejas estranhamente maduras e fora de época.

Estavam afastados há algumas semanas. Ele tinha finalmente conseguido não atender suas ligações e permanecer firme `a decisão que ela mesma tinha tomado, e como sempre, se arrependido depois. O amor não era mútuo. Ambos demoraram para perceber.

Fato é que meses antes ele tinha mencionado o “dia fora do tempo”, e ela nem sequer se lembrava disso. Provavelmente estava de ressaca, jogada na cama e ele, de peito estufado, semi nu, discorria carinhosamente para ela seus conhecimentos míticos sobre o universo. No calendário Maia, o dia fora do tempo é um intervalo entre um ano e outro. É chamado de dia do perdão. “É uma generosidade consigo mesmo ter a chance de se limpar antes de começar um novo ciclo”, disse ele, enquanto ela tentava entender o termo “generosidade consigo mesmo”. Ele substituia o prazer do cigarro pós sexo por uma mini palestra sobre os mistérios da vida. Ela achava aquilo meio ridículo. Mas gostava.

– Chegou cedo.

Abraçaram-se desajetadamente. Não teve pôr-do-sol na praça naquela tarde por conta das nuvens. Não que isso fosse um presságio de que a relação não ia funcionar, mas estava tudo encoberto naquele 25 de julho.

– Linda.

– E aí?

– E aí?

– Credo, parece que faz mais tempo. – ela estava visivelmente nervosa e se sentindo extremamente ridícula pois se considerava pelo menos quinze vezes mais segura que ele – Caramba… Cereja?

Ele, com sua gentileza benevolente que era o disfarce perfeito de um apego feroz e irracional que tinha por ela, achou por bem perguntar:

– Como você tá?

Ela ficou com ódio, porque quem pergunta como o outro está obviamente está bem, ou seja, tão bem, que consegue até se preocupar com o outro.

– Uma merda. Volta pra mim.

Ele, feliz como uma criança perdida que recém encontra a mãe no supermercado:

– Pensa bem. Tem certeza?

– Absoluta.

E assim voltaram.

E não foram felizes para sempre. O Dia do Perdão serviu para que eles pudessem, mais tarde, perceber o que estava por trás de suas escolhas e, generosamente,  perdoarem-se a si mesmos.

Hoje eles postam “feliz aniversário” no facebook um do outro uma vez por ano.

FIM

 

 

 


Deu Zebra

Ainda não há uma tradição de webséries no Brasil, nem no mundo. O formato vem sendo descoberto, aos poucos, com uma ou outra série pipocando aqui e ali. Caso você não seja uma das cinquenta mil pessoas que já viram Lado Nix, corra pra ver! Não é porque eu estou nela, e nem porque foi dirigida por um grande amigo. JURO!

Lado Nix é pioneira em linguagem e formato. Cheia de referências de cinema e games, aposta num humor que tira sarro de si mesmo, com piadas tão rápidas quanto os cortes da montagem – que picota planos fechados em deliciosos episódios de 6 minutos. Viva o formato websérie! Parabéns ao Paulão (Mavu) e a toda a equipe da Mambo Jack pela iniciativa ousada, corajosa e criativa!

Bom. Conheci o Paulão nos idos de 2001. Ele trabalhava com sapatos. E eu não trabalhava com nada. Eu tinha 17, 18 anos e estava no primeiro ano da faculdade. Ele já tinha uns 26 e entrava nas salas de aula para fazer campanha para a nova chapa do Centro Acadêmico. Era engraçado. Por ser um pouco mais velho que a pivetada, ele fingia que era o professor e dava 15 minutos de uma aula absurda. Aí ele revelava que era aluno e dizia para votarem na chapa Zebra.

Um dia, ficamos amigos. Coincidências do destino. Eu estava louca por um emprego meio período, e ele era o novo presidente do Centro Acadêmico da faculdade. Fui contratada. Minha função era ajudar os alunos a imprimir coisas, pregar cartazes, vender convites de festas, grampear as coisas que eles tinham impresso e desligar o ar condicionado no fim da noite.

Não vou mencionar os strippers, as velas e os anões que o Paulão contratava para dançar a conga em pleno Centro Acadêmico, porque isso não vem ao caso. E ele não teria como responder publicamente aos meus comentários. Mas fato é que a gente se divertiu horrores nessa época, em festas que tinham shows do Rodney Di, Gretchen e Bozo.

Os anos se passaram e nós mantivemos uma média de duas ligações por ano, nos respectivos aniversários. Ele vendeu as lojas de sapato e abriu uma produtora, a Zebra, que depois mudou de nome. Eu fui trabalhar em TV e fui engolida pelo sistema (#not). Na real, sempre senti que o Paulete estava por perto. A cada realização profissional minha, ele ligava para me dar força e dizer que era meu primeiro fã. Dez anos atrás, numa viagem pra Floripa, ele disse: “eu sei que você vai ser famosa. me dá um autógrafo”.

Na verdade, a fã sou eu. Inexplicavelmente, eu queria ser amiga desse cara desde a primeira vez que eu o vi fazendo um discurso que mais parecia um stand up comedy. Essa websérie me enche de orgulho porque é mais uma idéia maravilhosamente improvável e absurda que se concretiza. Assim como a chapa Zebra, o show do Bozo, e os sapatos que viraram câmeras. Alguém que tem coragem, organização e cara de pau de concretizar idéias absurdas (nesse país!) tem todo o meu respeito e fascínio.

Paulete, I love you. Conte comigo sempre. Parabéns e obrigada. Você é foda. Eu sabia que ia dar Zebra!


Kirk Hammett, o salvador do carnaval

Amigos, escrevi essa crônica em 14/10/2008, em Londres. Era verão, eu estava de férias com meu amigo Zé Antônio, e ele conseguiu que a gente fizesse uma entrevista com o Kirk Hammett, do Metallica. Eu estava animada, não fossem alguns problemas. Era carnaval.

Saio de casa acompanhada de duas meninas que nunca vi na vida e de uma cólica tenebrosa. Agosto. Carnaval? Não entendo. Inverte o hemisfério, inverte tudo? Resisto. Fui porque insistiram. Eu queria ter ficado em casa, esperando o Zé ligar e avisar a hora da entrevista. Tarde demais. Gostaria de conseguir me dissolver na água, junto com gotas de buscopam e ficar dormindo no fundo do copo. Infelizmente eu não tenho remédio.

Nada funciona neste dia porque hoje pode ser profano sem ir pro inferno. A celebração da carne anima jamaicanos, latinos e ingleses mais bronzeados. E a tal da festa acontece num bairro que, até então, eu só tinha ouvido falar em nome de filme.

Chegamos em Notting Hill e o pseudo-carnaval bombado e inimigo do bom gosto já deixa rastros no chão: plumas e purpurina suja junto com restos de carros alegóricos que já no próprio desfile vão caindo aos pedaços. Coisa pra gringo ver. De qualquer jeito, acho que eu era a mais negra de todas. Sem brincadeira.

E fui parar não sei como com aquele copo cheio de café na mão. Ponstan até tinha, mas esse, se eu tomar empacoto. Tenho comichão. Na real, preferiria o ponstan do que ter vindo parar aqui. Tem um aparelho de som novo e gigantesco numa prateleira frágil de madeira que treme insegura a cada batida da axé music que rola no talo. Juro por Deus. O som não foi tirado do plástico e nem vai ser. Assim deve ser mais chique.

Não sei de quem era aquela casa, se era da “loura” cinquentona de piercing no umbigo que rebolava até o chão com uma sandália plataforma de madeira ou do rapaz com a camisa do Fenômeno que se esgoelava pela cozinha. Descobri porque os paquistaneses da imigração fazem tantas perguntas para os brasileiros que desembarcam em Heathrow. Os caras infernizam geral. Mas pelo menos me deram esse café que esquentou meu útero em contrações.

– Obrigada, senhora. – para a provável mãe da “loura”.

Uma querida. Tinha um cachorro minúsculo que se enroscava aos seus pés enquanto ela fazia mais café. Menor que um rato. Nunca vi.

As duas meninas, que eu custava a memorizar os nomes, já suavam de tanto sambar em frente a casa, por onde passavam os blocos. Minha cólica piorava sempre que eu olhava para fora. Achei melhor olhar os bibelôs da sala. Estatuetas de santos, quadrinhos, pratos pintados, miniaturas, anjos de porcelana. Como será que esse pessoal trouxe tanto cacareco na mala sem quebrar? Tem perguntas que simplesmente não têm resposta. A gente tem que aceitar isso na vida. Principalmente em dias como este.

Ufa, tocou meu celular. Aleluia, a entrevista com o Metallica vai ser mais cedo. Ok, to indo.

– Gente, desculpa, a festa tá boa mas eu tenho que ir! Tchau!


Fotosenhos recentes



Fé é algo a ser exercitado.

Concluí a frase antes mesmo de refletir sobre ela, e por isso mesmo, acredito que esteja certa para mim. Veio da barriga a certeza. Para alguns, ela nasce com a gente: não se questiona a vibração acima da cabeça. Ela nos conecta ao invisível, concretíssimo, tão concreto quanto o mundo físico. Para outros, a carga religiosa da palavra gera uma série de fragmentações mentais, julgamentos, desconfianças e raciocínios lógicos que justamente por estarem presos `a mente (ego), não se abrem para perceberem a gigantesca diferença entre religião e espiritualidade. 

E daí?

Estou tomando um chá um pouco sem gosto.

E estou com sono.

 Vi dois filmes recentemente que me fizeram pensar sobre qual é o real (e útil) significado da fé.

Um deles leva a fé no sentido religioso. O outro, no sentido espiritual. 

A Árvore da Vida, de Terence Malick, fala sobre a relação de poder entre um pai e um filho, a perda de um ser amado e o desejo de perdão e redenção. Mostra também dinossauros, chamas queimando, versículos bíblicos e muitas imagens legais estilo documentários da BBC. Da hora. Mas o fundamento da história me preocupa um pouco. Malick nasceu no Texas, nos anos 40. Seus filmes costumam trazer uma forte carga religiosa. Religiosa no sentido institucional mesmo.

As mensagens são várias, desde “até os ‘bons’ sofrem”, “o importante é o amor”, até “perdoe”, etc. Todas elas ilustradas imageticamente de uma forma bem simples de entender (tipo negros e brancos dando as mãos, mães ruivas e lindas com vestidos esvoaçantes e pessoas se reencontrando na praia).

O maniqueísmo religioso conduz logicamente ao seguinte raciocínio: se eu sou bom, eu mereço. Se eu fizer o bem, eu serei salvo. E assim, promove mais e mais a repressão da sombra, ao invés da aceitação (e integração) dela.

Ninguém é inteiramente bom, nem inteiramente ruim, certo? A bondade da mulher ruiva (Jessica Chastain) no filme é utópica e idealizada. Todo mundo tem dentro de si potencial de desenvolver a luz e a sombra, e quanto antes a gente aceitar a condição humana, melhor. Momentos de instabilidade geram medo, e logo, precisamos nos agarrar a alguma certeza. Os Estados Unidos, com tanta crise séria, se vê caindo, desestabilizando junto com essas certezas frágeis. A necessidade de ser “perdoado” aparece no incosciente coletivo. Aí, um filme bem emocional para todo mundo se sentir acolhido e perdoado vira hit. Afinal, fomos “bons” e fizemos o “bem” a vida inteira, certo? Não é justo sofrermos! Segundo essas regras, não. É que infelizmente elas não são reais. Para o senhor Malick, difícil lidar com isso aos 70 anos, eu imagino.

 É por um caminho mais concreto que se desenha a fé representada em Melancolia, de Lars Von Trier.

É um pássaro? É um avião? Não, é um planeta, fudeeeeu!

Claire (Charlotte Gainsbourg) vive um casamento desses estruturados em muitas coisas materiais, filho, propriedade, etc. Ela canaliza sua ansiedade organizando coisas. Está sempre pensando no futuro ou no passado. Justine (Kirsten Dunst) parece que vai seguir o mesmo caminho, não fosse por uma capacidade especial de “prever” coisas. Na noite de seu casamento ela vê um planeta diferente no céu e entende que tudo vai acabar. Antes que tudo acabe, ela acaba com tudo: seu casamento, suas relações, sua vontade de viver, e entra em depressão. Porém, aos poucos, Justine vai se reconstruindo, encarando a verdade que está por vir. Verdade esta que Claire e seu marido não conseguem aceitar. Justine passa o filme inteiro se estruturando para morrer, e faz o que pode para lidar com a verdade. Claire não consegue aceitar a verdade e na hora da morte está totalmente sem estrutura. Para Lars Von Trier, a fé está ligada `a conexão com a sua própria verdade.

 Engraçado. A vida só dá duas certezas pra gente.

 1)    A gente vai morrer.

2)    TUDO é transitório. A alegria passa. A tristeza também passa. Até a uva passa.

E essas únicas certezas não são lá muito reconfortantes, néam? Então não é melhor viver de acordo com as próprias verdades e responsabilidades em vez de cobrar alguém pela sua recompensa? Recompensa? Se você faz o que quer, o que gosta, a recompensa é aqui e agora. Deixa Deus em paz, pôam. 

 

Beijos ❤

@LuMicheletti

 

PS – Para quem for ao cinema em busca das referências arquetípicas da “árvore da vida” que a cabala faz, pode tirar o cavalinho da chuva, porque não tem nem cheiro.

 


Tempo

Originalmente postado em 21/01/2009

Editado em 10/08/2011

Três semanas antes

Mais uma vez no apartamento de Dea Martins. Desta vez ela não está. Tenho a sensação de que recalco um certo amozinho por esse Rio de Janeiro, que me causa antipatia. Ele não me dá bola. O rio que me leva para janeiro – desesperado pela aproximação do ano de 2009 – parece mais uma corredeira alucinada do que o riachinho que foi antes. Hoje é 30 de dezembro. Quase 31. Estrondos já acontecem lá fora. Todo mundo sorri e agradece a tudo. Agradece ao taxista, ao balconista, `a Iemanjá, ao tempo que melhora, ao raio que o parta. Tem que aproveitar, nem sempre é assim. Quase me esqueço: o que eu estou fazendo aqui, mesmo? Ah, me lembrei. Amanhã chega alguém que eu espero há meses.

Tento conter os fogos de artifício que pipocam em sinapses cerebrais e me concentrar na noite que precisa ser dormida. Se Dea estivesse aqui eu conseguiria expressar melhor o que quero dizer porque ela me inspira horrores. When she is around, as palavras escorrem pela ponta dos dedos e sapateiam sobre as letras do teclado. Mas desta vez, Dea leonina me abandonou e foi para a Lapinha com seus amigos malucos, me deixando uma chave de presente. Mandou eu me divertir, namorar e desligar o computador caso ele venha a ser usado – nessa ordem. Ela fez uma lista. Não apenas: espalhou bilhetinhos pela casa inteira. Parecem lamparinas, porque são amarelos. Amarelos post-it. São mini romances grudados pelas paredes do pequeno apartamento no Bairro Peixoto – o oásis de Copacabana. Me fazem rir. Um dos bilhetinhos ensina a usar o chuveiro. Ela diz: ‘ligue primeiro a quente. Quando o aquecedor começar a funcionar, tempere com a fria. Ou, se neste dia estiver muito calor, nem ligue a quente. Tome banho frio’. I love it.

O porta-retratos caiu de novo. De novo é separado. Insisto em escrever denovo junto porque acho que soa melhor. Minha mãe me corrigiu um dia desses. Voltando: Déa tem uma estante no quarto dela lotada de portas-retrato. Uma estante de instantes. São instantes congelados em molduras antigas, de diferentes cores e épocas. Fotos em preto-e-branco, coloridas, desgastadas, outras novas. Tem fotos nas paredes. Anjos, beijos gays, Paris na chuva. E tem esse porta-retrato que caiu sozinho pela terceira vez esta noite. E não está ventando neste quarto. Obviamente  fiquei com medo de não ser bem-vinda por qualquer entidade oculta que se esconda entre o que vejo e o que imagino.

Estou dando um jeito de entrar em pânico por alguma razão obscura e inexplicável. Assim ela permanence obscura e inexplicável. Mais fácil. O motivo real do meu medo é real demais para uma elaboração pacífica e compassiva que me permita pregar o olho até amanhã de manhã. Prefiro ter medo de coisas impossíveis do que assumir a verdade de certos acontecimentos iminentes que venham a provocar crises doloridas dentro de mim. Transformações reais. Vou continuar fugindo e fingindo mais um pouquinho. Tentando. Adorei minhas feições hoje no espelho. Estou tentando me distrair comigo. Com minha permanente nos cílios, que gracinha. Minhas unhas paris com renda. Qualquer futilidade besta que me distraia do fato de que em três semanas minha vida vai virar do avesso. Ele vai me deixar de novo.

Três Semanas Depois

Hoje Janeiro já chegou, o sol veio e foi umas várias vezes entre coqueiros na praia e prédios na cidade. Agora parece que foi embora de vez. Quando chove assim parece que ele nunca mais vai voltar. Chuva e choro. Ambos começam com ch. Cheiro também. Chegada começa com ch. Mas acho – acho também tem ch – acho que ‘partida’ deveria se chamar ‘chegada’ e vice-versa, seguindo a lógica das lágrimas que vão despencando de cima para baixo fazendo do ch uma onomatopéia perfeita para ilustrar a água que cai: chuá.

Ordinárias três semanas seriam estas não fosse por uma urgência inédita de sentir o ar entrando por absolutamente todos os centésimos de segundo dos meus poros. Isso faz a gente sentir a vida como ela realmente é.

Falei com a Dea uma vez apenas por telefone. Ela odiou a Lapinha. Não tinha nada para fazer. O chão era todo de terra, não tinha luz elétrica e choveu tanto que eles ficaram atolados no barro, fugindo de adolescentes hippies que descobriram que, entre os malucos da turma dela, tinha uma atriz  super famosa que todo mundo conhece. Sob a varanda da casa capenga que eles alugaram, conteciam serenatas para homenagear a atriz durante as madrugadas. Ainda bem que todos são bem humorados e a vida continua.

O ano começou agora, dia 20 de Janeiro. Três semanas atrás eu era a pessoa mais ansiosa do mundo – hoje sou a mais pensativa. A mais ansiosa hoje deve ser o Obama. Três semanas atrás ele deveria ser o mais pensativo. E espero que continue pensando.

Está vazio, quieto. Não digo abandonado porque é da minha própria casa que estou falando. Roupas sujas. A bagunça me olha. Os gatos estão jogados num canto, acostumados `a inconstância das coisas. Nem miam, de tanta preguiça.

Não sei o que vai acontecer e tenho medo. Sinto que uma mudança está próxima. Meu estômago me avisa que nada será como antes. Pergunto ao tarô e ele me devolve a Lua como resposta. É a mesma imagem que o inspirou a pintar e emoldurar um retrato dias atrás. Olho para a parede: sou eu de costas, na praia, com um pincel na mão e uma lua de Van Gogh no céu, como se eu mesma tivesse acabado de pintá-la.

Leio o significado da carta:

“Um tempo de mistério, assombro e terror. Estamos perdidos até para nós mesmos. Na profundeza das águas, um lagostim tem as garras estendidas. Atrevemo-nos a prosseguir? Ou essa monstruosa criatura estenderá as patas a fim de puxar-nos para trás? A lua a todos contempla – em silêncio. A Deusa da Lua na noite terrível é também a dadora de sonhos, a reveladora de mistérios ocultos. É realmente o lagostim nosso inimigo? Ou também luta para chegar `as torres distantes? Uma revelação… o terror se dissolve em assombro. A criatura já não parece ameaçadora. O lagostim oferece o dorso para o nosso passo. É agora ou nunca. Ousemos ou morramos”. (Jung e o Tarô. Nichols, Sallie)

 

Dois anos e meio depois

Não entendo ainda a carta da lua. Tenho medo dela. Cada vez menos medo, na verdade.

A Dea é que vem me visitar agora. Ela vem toda semana para São Paulo. Colhi essa amizade num pântano e ela é uma flor de Lotus para mim.

Ele voltou com malas. Viu o retrato pregado na parede e tentou se sentir em casa. Ganhou uma chave de presente, lavou a louça, cozinhou, roncou, reclamou dos cachorros que latem na vizinhança. Fez isso por um ano. Um dia, foi embora para sempre. Meu estômago doeu muito. Chs despencaram de mim, drenando minha água. Hoje não mais.

Uma transformação realmente ocorreu. E outra, e mais outra. Descobri que elas não acabam. Tenho me distraído menos com a cor do meu esmalte ou a curva dos cílios. Acho que perdi um pouco da capacidade de me enganar. Talvez por isso a carta da Lua não me assuste mais tanto.